CHICOCUMA Uma figura lendária da Cidade do Lobito crónica de Eduardo Jorge Esperança (in Jornal "O Lobito") |
Nunca soube ao certo o seu nome. A silhueta do Mahatma Ghandi mas negro, sem óculos, ainda mais simpático, calcorreando passeios com um saco eternamente atado à ponta de uma vara, assente no ombro. Chicocuma, era aquele velho simpático, a súmula - no seu maneirismo gestual - de toda a ultra-verbalidade m'bundo. É incrível como, tantos anos depois, estas imagens nos saltam da memória como um vídeo eterno; não sei mesmo se deva estar grato ao inconsciente por esta liberdade de acesso. O velho, todos os dias descia da Canata à cidade dos brancos para dar uma volta de sobrevivência; aceitava tudo - pão duro, uma sopa quente, um pano velho, uma esmola. Tudo metia no saco - um mistério que nunca consegui desvendar - que jamais ultrapassava determinadas proporções, como se o tamanho do saco pudesse eventualmente desvirtuar a sua "imagem de marca" Em todos os sentidos, Chicocuma se tornou funcional. As mesmas beneméritas domésticas, que exorcizavam assim barato sabe-se lá que pecados, oferecendo restos de sopa ao velho negro, nele materializavam também o fantasma do "velho do saco", do "papão"; e as crianças comiam a sopa toda porque, lá a um canto do quintal, encostado à parede estava de facto o Chicocuma - terrível perseguidor - de - criancinhas - que - não - comem - a - sopa. Punha-me então a imaginar o assombroso destino dos inocentes que, pendurados na ponta da vara dentro do saco, desapareciam ao fundo da rua levados por aquele velho trôpego, sabe-se lá para onde. E, cada vez mais, Chicocuma se transformou no grande lobby da sopa, e depois, de tantas outras coisas. Até que um dia... Dei de caras com ele no portão. Não sei se foi a curiosidade, se o medo, que me paralisou. Levantou o ferrolho, abriu o portão e veio direito a mim. Passou-me a mão pelo cabelo: - Minino, onde está tua mamã? Fiquei atónito a olhá-lo sem resposta. Deve ter-me achado malcriado. Atravessou o quintal e foi direito à cozinha que dava para as traseiras da casa. Avancei meia dúzia de passos naquela direcção e estanquei de novo. Voltou - segui-lhe os movimentos: sentou-se no chão, encostado à parede do quintal; pousou a vara com o saco, a malga de sopa e outro saquito de plástico que lhe deveriam ter provavelmente dado na cozinha. Assisti à refeição completa antes que me satisfizesse a curiosidade. Chicocuma comeu calmamente a sopa com a colher de alumínio. Só quase no fim levou a malga à boca para emborcar o resto. De vez em quando levantava os olhos para mim e fazia aquele sorriso comprometido que me confundia ainda mais, tão descabido era em tal personagem; passou uma côdea pela malga da sopa e engoliu-a, limpou a boca à camisa e voltou a olhar-me com cara de satisfação. Era chegado o momento: puxou a vara para junto de si e desatou meticulosamente o pano que servia de saco; estendeu-o no chão e... vestígios de crianças, nem cheiro: comida, trapos, uma caneca, um garfo, corda uns pauzinhos, bugigangas! Olhei tudo aquilo ainda assim incrédulo. Talvez todas as crianças tivessem naquele dia comido a sopa, talvez - pensei - mas então Chicocuma deveria estar triste, ou zangado, e não com aquele sorriso humilde e tão estranho. Avolumou-se-me a confusão. Vi-o meter o saquito de plástico sobre o pano, voltando a fechá-lo atado à vara. Levantou-se e passou por mim com um "lari pó" de mãozita oscilante. Cedo a perspicácia infantil se me sobrepôs à inocência. Percebi então que o Chicocuma não fazia mal a uma mosca. Escusado será dizer que, com esta tomada de consciência da minha alienação enquanto legítimo representante das classes enfardeiras de sopa, estalou a revolução lá em casa. Seguiu-se a "crise alimentar" com a qual aliás me dei muito bem, já que arranjei melhor e mais apetecível ocupante para o espaço vago pela sopa no meu pequeno estômago, o que me veio depois a dar cabo dos dentes... Mas isso é outra história! |